Estigma do serviço público na reforma administrativa do governo federal

Dólar em alta recorde, bolsa em queda. Inflação de janeiro anunciada com a menor taxa para o mês desde 95, ajudada pela queda nos preços da carne. Trinta e quatro brasileiros que viviam em Whuan, na China, embarcavam nos aviões da Força Aérea Brasileira rumo a Goiás, fugindo do coronavírus. As notícias da sexta-feira, 7 de fevereiro, mostravam um dia comum para os padrões brasileiros não fossem as declarações do ministro da Economia Paulo Guedes sobre o servidor público “parasita” que está matando o “hospedeiro” com suas regalias e vantagens.

Paulo Guedes chegou a ser aplaudido pela plateia na Fundação Getúlio Vargas quando fez referência a dados incorretos para justificar o argumento de que o dinheiro não chega à população porque o funcionalismo público brasileiro consome “90% da receita”. Mas as declarações repercutiram rápido e mal. As críticas, algumas de setores do próprio governo, fizeram o ministro recuar, postura, aliás, tão comum quanto as notícias do dia.

Como de costume, Guedes atribuiu à imprensa a distorção do que disse. “Eu não falava de pessoas, e sim do risco de termos um Estado parasitário. Aparelhado politicamente. Financeiramente inviável. O erro é sistêmico, e não é culpa das pessoas que cumprem os seus deveres profissionais, como é o caso da enorme maioria dos servidores públicos”, retratou-se pelo WhatsApp. Segundo o ministro, suas declarações foram tiradas de contexto.

Em seminário organizado pelo Grupo Voto, em Brasília, Paulo Guedes reforçou a ideia de que foi mal interpretado. “Eu não disse nada disso (que o servidor é um parasita). Eu estava dando o exemplo de quando os gastos com funcionalismo devoram 95%, 96%, 100% das receitas. Tem município chegando a essa situação. Então, o Estado que está virando parasitário. O cara que me referi foi o Estado”. Vê-se, pelo contexto desenhado nas declarações corrigidas do ministro, a difícil missão da equipe econômica: eliminar o parasita quando ele é o próprio hospedeiro.

O hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita, o dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático.

Paulo Guedes

O jornalismo declaratório seguiu os padrões também costumeiros e entrou na onda discursiva promovida pelo governo, que busca isolar seus seguidores das repercussões que impactam nas estratégias políticas de uma gestão omissa quanto a dados concretos e fatos. Não houve uma resposta direta à imprensa, tampouco a iniciativa de cobrar direitos de esclarecer, nos mesmos canais que o interpretaram mal, o sentido do que disse o ministro. Falar diretamente com seu público eleitor, especialmente o futuro, tem sido a tática para desmerecer o trabalho jornalístico na apuração das ações do governo. E, é bom que se diga, o jornalismo tem contribuído ao insistir, exclusivamente e com raras exceções, em um embate discursivo irrelevante.

Se a questão é contexto, deve-se avaliar a dimensão histórica dos dados e sua relação com as políticas de Estado. O histórico de receitas do governo federal, por exemplo, (gráfico 1) mostra que, quando comparado à despesa em questão, os gastos com o funcionalismo não chegam a 90% em nenhuma das proporções possíveis de verificar. O ministro não foi claro em relação ao tipo de receita usada como base, mas o máximo de comprometimento com a folha do funcionalismo a que chegamos é 56,7%, se usada apenas a arrecadação de impostos.

Os estudos a respeito do impacto da força de trabalho estatal na economia têm usado a Receita Corrente Líquida como principal dado de comparação, justamente por descontar gastos orçamentários primordiais na análise, além de servirem como parâmetro para a Lei de Ajuste Fiscal. É possível perceber na série histórica que a proporção de despesas com o funcionalismo público, aqui incluindo todos os servidores civis e militares ativos, se mantém a mesma em média, na faixa de 1/3 da RCL. Os dados estão disponíveis no site do Tesouro Nacional, mas é preciso garimpá-los.

Gráfico 1

Em outra perspectiva de análise (gráfico 2), considerando os vínculos empregatícios apenas de civis no serviço público, a série histórica evidencia uma proporção de despesas em relação à Receita Corrente Líquida ainda menor. Neste caso, considerar apenas civis é essencial, uma vez que a reforma administrativa proposta pela atual equipe econômica não inclui os militares. Os dados apontam uma certa estabilidade no controle de gastos, mesmo que com aumento nos valores reais destinados à folha de pagamento.

De acordo com o Atlas do Estado Brasileiro, em Três décadas de evolução do funcionalismo píblico no Brtasil (1986-2017), estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, houve uma expansão significativa do setor público brasileiro, mas de impactos que não justificam o discurso demonizador promovido pelo próprio ministro da Economia. “As remunerações médias aumentaram no conjunto do setor público, mas com trajetórias distintas ao longo do tempo — a primeira, de meados dos anos 1980 até a implantação do Plano Real, em 1994. A segunda, desse período até 2003, ano em que se inicia um movimento de aumento continuado das remunerações médias, até 2014. Desde então, a crise econômica produziu estabilidade ou retração das remunerações médias”, aponta o relatório em um dos aspectos de suas conclusões.

De cada 100 servidores públicos, apenas 10 são federais. Em três décadas, segundo o IPEA, o crescimento da força de trabalho estatal se concentrou nas áreas de saúde e educação, com volume maior nos municípios (gráfico 3). Depois da Constituição de 1988, os municípios e os estados, que também não entram na proposta agora, passaram a ter maior participação em atividades nessas áreas. As evidências são de que não convém tratar uma reforma “nacional” como sinônimo de “federal”. Além disso, o Estado é composto por três poderes distintos, com características também muito diferentes no que diz respeito à valorização e à remuneração. Dentro do Executivo, por exemplo, está o maior contingente de servidores e, igualmente, o maior grau de desigualdade entre faixas salariais e funções.

Nossa avaliação é que, em seu conjunto, os dados apresentados estão longe de revelar um setor público em expansão descontrolada, em tamanho e despesa.

IPEA
Gráfico 2

Outros estudos têm sido elementares para a gestão do serviço público em todos os níveis federativos e poderes. Mas os dados ainda se concentram no âmbito dos investimentos da União. Dez anos atrás, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico publicou a “Avaliação da Gestão de Recursos Humanos no Governo – Relatório da OCDE: Brasil“, cujas orientações faziam crer numa evolução positiva dos serviços públicos, ainda que com ressalvas. Dizia o relatório que o quantitativo de servidores era pequeno se comparado a outros países da OCDE, mas o serviço estava se tornando cada vez mais caro na medida em que entregava resultados que precisavam ser melhorados.

Fazia parte do argumento o princípio de que o governo federal vinha elaborando estratégias para valorizar o mérito e a moralidade com “disposições legais e constitucionais” para promover uma gestão eficaz dos recursos públicos, no que diz respeito aos serviços prestados à população. O relatório propunha, contudo, maior flexibilidade e planejamento estratégico na aplicação e gestão desses recursos. A leitura à época dava conta de uma burocracia que precisava ser modernizada para qualificar os serviços do Estado e entregar melhores resultados.

O governo federal deveria ser elogiado por suas realizações no sentido de garantir o mérito, a continuidade do pessoal, a imparcialidade e o profissionalismo na gestão dos servidores públicos e por manter um controle rígido sobre a dimensão da força de trabalho.

OCDE/2010
Gráfico 3

A OCDE, ao contrário das referências usadas pelo atual governo para desmerecer o serviço público, não entendia que a expanção das atividades promovidas pelo Estado fossem danosas, pelo contrário. Em 2010 se reconhecia que o serviço público é essencial para o desenvolvimento do país, ideia que se mantém nas análises que levam em conta exemplos de outros países de economia estável. É importante observar que, numa série histórica (gráfico 4), as despesas com servidores civis federais mantiveram a média de 2,7% em relação ao Produto Interno Bruto, considerada relativamente baixa. Quando somados os vínculos nos três níveis federativos é que o percentual chega a 10,5%.

É fato que há uma deterioração no nível de confiança quanto às instituições públicas e à qualidade de seus serviços. Deterioração que pode ser analisada sob diversos aspectos, incluindo o impacto dos gastos nas contas públicas. A questão em debate, entretanto, é o quanto as reformas administrativas vão abrir de brechas para o desmonte de uma estrutura que, quando analisada de forma responsável, merece ser qualificada no que diz respeito aos resultados.

Um dos fatores primordiais nesse debate é a estabilidade nos vínculos com o serviço público. Ao longo das três décadas analisadas pelo IPEA, ficou claro que houve avanços na consolidação de uma estrutura estatal buscando valorizar sua força de trabalho. A estabilidade, prerrogativa de concursados, oferece garantias de que os serviços não estarão sujeitos a pressões de gestores temporários, especialmente os de cargos eletivos. Quando um ministro da Economia, cargo temporário, sustenta a proposta de acabar com a estabilidade, ele está reforçando a possibilidade de compor e recompor a força de trabalho de acordo com o viés político, ideológico ou com os mercados.

A estabilidade no vínculo com o serviço público tem a ver com o cargo, não com a pessoa que o ocupa. Por isso os concursos públicos funcionam como seleção criteriosa de acesso aos cargos cuja função precisa ser garantida e protegida de dirigentes eleitos. A legislação atual permite o desligamento quando o pertencente ao cargo não cumpre as funções para as quais foi designado e publicamente selecionado. Os levantamentos mostram que os servidores de carreira é que englobam o grande contingente de serviços, o que é considerado positivo pelos organismos econômicos.

Gráfico 4

Ao argumentar que 88% da população desejam o fim da estabilidade no emprego público, o ministro Paulo Guedes diz uma meia verdade. De acordo com pesquisa do Datafolha publicada pela Folha de São Paulo em 19/01, não citada pelo ministro ao usar os dados, pode-se considerar outros percentuais complementares e que ajudam a entender o contexto: de cada 100 entrevistados, 91 dizem que os servidores públicos deveriam ser avaliados constantemente e premiados de acordo com o desempenho. Fica evidente a distorção promovida por Paulo Guedes, uma vez que a aprovação da demissão no exercício de cargo público concursado está diretamente associada à avaliação de desempenho. E a pesquisa também mostra que 72% reconhecem a competência de servidores em áreas consideradas essenciais, além de mais da metade associar a estabilidade no emprego um motivo para a boa produtividade.

Vale também, a título de complemento, considerar a relação de servidores públicos com integrantes do setor privado e sua proporção diante da população economicamente ativa (gráfico 5). Transparece o fato de que, mesmo em momentos de maior estabilidade econômica e níveis de emprego, o percentual de servidores no serviço público se manteve na média. O mesmo não acontece no setor privado, mais sujeito às variações econômicas. Na verdade, o cenário mostra o quanto as críticas ao serviço público estão sujeitas ao humor dos mercados.

O próprio Fundo Monetário Internacional reconhece que o nível de remuneração dos servidores públicos também serve de estímulo para que o setor privado acompanhe a qualificação de sua força de trabalho. No Brasil, se compreende o inverso: como os níveis de salário no setor privado são muito baixos, inclusive para os padrões de economias próximas ao nível de desenvolvimento do país, deve-se baixar o padrão das remunerações pagas no setor público. Outra distorção, uma vez que a proporção de salários mais altos é bem menor do que a média geral.

O discurso do ministro da Economia, dando conta de que o servidor público recebeu 50% de aumento acima da inflação não reflete o que mostram os estudos. Contudo, ele talvez estivesse se referindo aos reajustes nos estados, avaliados pelo IPEA como responsáveis pelo crescimento do deficit da previdência por serem repassados igualmente aos inativos, estratégia que rendeu ao governo a reforma das aposentadorias. Em alguns casos, o aumento foi superior a 50%, tática inclusive usada como material de propaganda política.

O nível, a composição e estrutura da remuneração dos servidores precisam ser competitivos com os do setor privado para atrair, desenvolver e reter o talento exigido e incentivar o desempenho.

FMI
Gráfico 5

Há muito o que discutir sobre o serviço público no Brasil. Mas há muita desinformação, inclusive oficial. O Estado brasileiro, de acordo com os dados, não é tão grande quanto se apregoa e os impactos das políticas adotadas em governos anteriores não foram tão danosas como se quer fazer parecer, ainda que haja necessidade de correções quanto à qualificação dos serviços prestados. O nível de comprometimento da estrutura merece atenção, mas não pelo viés de sua redução.

As reformas, sempre necessárias, precisam ser estudadas de acordo com informações, incluindo diferentes pontos de vista. Existem estudos de diferentes correntes econômicas e premissas políticas, cujo valor está na interpretação dos dados. O jornalismo declaratório e a estratégia discursiva governamental de falar diretamente aos convertidos ajudam a diluir esse cenário. Reforçados pelos noticiários do dia a dia, os temas em pauta carecem de profundidade. Por isso declarações vazias ganham corpo e viralizam.

O que está em jogo agora é o impasse entre a equipe econômica, que quer velocidade na aprovação das reformas administrativas no Congresso Nacional, e o núcleo do governo, de olho em dividendos políticos para as eleições municipais deste ano. As declarações de Paulo Guedes, como característico no governo Bolsonaro, não associam fatos e argumentos. E nem precisam. O Estado no Brasil, traduzido exclusivamente por serviço público, carrega o estigma de ser o responsável, sempre que uma crise de mercados emerge no país.

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